Os fuzis

“Não tô gostando da cara dessa gente,” diz um dos soldados, olhando para um dos muitos retirantes famintos da cidade de Milagres, no sertão da Bahia. O militar, empregado para garantir que o alimento produzido no campo vá até a cidade, estranha a mirada indiferente de um sertanejo. Reparando o número de potenciais pilhantes que precisa combater, ele não consegue decifrar a expressão nos rostos dos indigentes, não sabendo se há ou não uma fagulha de insurreição a ser apagada. A fala resume a contradição de Os Fuzis, que olha para o povo, mas não o vê.

Parte da canônica “Trilogia do Sertão” do Cinema Novo, ao lado de Deus e O Diabo na Terra do Sol e Vidas Secas, o filme de Ruy Guerra opunha-se aos escapismos da indústria cinematográfica a partir de uma abordagem neorrealista e militante. O objetivo era produzir uma denúncia da situação de penúria social da época. Reforçam esse compromisso com a verdade escolhas como as tomadas em planos sequências e com profundidade de campo, além da gravação no local em vez de estúdios e o uso de atores não profissionais. 

Hoje, no entanto, a “estética da fome” dos cinemanovistas é revista de forma mais crítica: de quem era a “verdade” que queriam registrar? Será que em vez  de mostrar “o real”, não se exibe apenas um olhar tomado como real?

Os protagonistas de Os Fuzis são militares, contratados para “manter a ordem”, isto é, a própria fome no sertão. Os soldados passam todo o filme receosos de que o desespero extremo que os rodeia resulte em uma rebelião, mas o povo não se revolta: é Gaúcho, o chofer do caminhão de alimentos, que se indigna por eles. No clímax, o mártir sulista morre tragicamente, os retirantes seguem famintos e a comida vai para a cidade. A ordem está mantida. 

O sucesso da missão, no entanto, é um desfecho melancólico em que a revolução tão sonhada pelos intelectuais marxistas nunca chega devido a alienação e passividade da população, incapaz de tomar as rédeas de sua vida. Seguindo a emblemática crítica de Roberto Schwarz, Os Fuzis reproduz, em certa medida, um olhar elitista, em que reforça estereótipos danosos do nordestino e rebaixa o próprio “povo” que procurava retratar.

Ainda assim, vale admirar como na própria materialidade do filme há algo que extrapola a presunção revolucionária. Os Fuzis divide seu enredo ficcional com trechos documentais, mostrando entrevistas com retirantes e filmagens da vida no sertão. Nesses registros, o sertanejo, ao invés de se confundir com o cenário do semiárido, compartilha histórias singulares e seus costumes regionais. São instantes contidos na própria imagem em que o povo resiste não apenas à hostilidade do ambiente, mas também à claustrofobia do roteiro.

Ficha Técnica

Direção: Ruy Guerra

Roteiro: Ruy Guerra, Pierre Pelegri, Miguel Torres

Elenco: Átila Iório, Gaúcho

Nelson Xavier, Nelson Xavier, Maria Gladys

Sugestões de Leitura 

SCHWARZ, Roberto. O Cinema e Os fuzis. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. pp. 29-36.

VERAS, Pedro Figueiredo. Desvios de olhar: as aparições de figurantes no cinema novo. 2017. 225 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Comunicação Social, Ufmg, Belo Horizonte, 2017.

SEVERO, Carolina Asti. Cinema novo a partir da perspectiva de gênero: as mulheres em os cafajestes, os fuzis e os deuses e os mortos (ruy guerra/1962/1965/1970). 2021. 230 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de História, Puc – Rs, Porto Alegre, 2021.

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